A PSEUDO UNIDADE DE REDE: DEU “COCEIRA NAS IDEIAS”
- Valdir Nogueira
- 4 de abr. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 9 de mai.

Rubem Alves certa vez escreveu sobre as coceiras nas ideias e, sei, temos muitas delas. Essas coceiras que nos colocam dúvidas pueris, que nos inquietam a todo tempo, que nos tiram do lugar e nos fazem ver um pouco mais longe. Estou com uma dessas coceiras que inquietam. A minha, incomoda. Uma coceira que há bom tempo vem me incomodando desde quando entrei em escolas para ser professor – aprender a sê-lo e, também, pelos caminhos que percorri em outras realidades Brasil a fora, como aprendiz de mim e de ser educador.
Não quero generalizar, pois não tenho dados como aqueles construídos numa pesquisa para validar um sistema de análise que possa produzir generalizações. Tenho a vivência, tenho o olhar alcançado pelos sentidos, pelo vivido; tenho as memórias e as escutas que fiz de colegas e profissionais em muitos contextos. Se for validar essas reminiscências que me fazem inquieto e que me coçam as ideias, me pauto no que escreveu Larosa sobre a experiência: “[...] a experiência é o que me acontece e o que, ao me acontecer, me forma ou me transforma, me constitui, me faz como sou, marca minha maneira de ser, configura minha pessoa e minha personalidade. Por isso, o sujeito da formação não é o sujeito da educação ou da aprendizagem e sim o sujeito da experiência: a experiência é a que forma, a que nos faz como somos, a que transforma o que somos e o que converte em outra coisa” (LAROSA, 2022, p. 48).
Toda experiência me transforma, me ensina, me permite ver um pouco além do visível; elas me ajudam a encontrar fios soltos nos tecidos que me constituem; me permitem, a mais, fazer outros tecidos com o que fizeram ou continuam a fazer de mim quando permito que façam comigo o que não poderia, ou jamais conceberia em sã consciência fazer com os outros, principalmente em Educação, em Escolas, em Redes. Essa experiência que me toca, me acontece, me forma e transforma, me faz ser quem sou, me permite olhar para trás e questionar: por que, na ideia de igualdade, de unidade e de conjunto, ao invés de potencialização do diverso, do múltiplo, do singular, essa potência em ser – diverso, múltiplo, singular, fica invisibilizado nas caixas, nos quadrados, nas métricas do controle e da submissão ou subserviência? Seria isso, um novo modo operandis do patriarcado ainda muito presente em muitas instâncias de gestão? Outro recurso utilizado em novas formas de opressão?
Arrisco pensar que pode ser, em hipótese, isso; mas, também, pode ser a incompreensão da compreensão – só defende quem reconhece e, reconhecer exige conhecimento (MORIN, 2022). Conhecimento, por sua vez, exige profundidade e mergulho na compreensão das singularidades, diversidades, multiplicidades que operam na constituição de um sistema, de uma rede, de um tecido entretecido no conjunto – tecido este capaz de valorizar outras singularidades. Quando escrevo sobre isso, penso nas memórias de, muitas vezes ouvir, em escolas, em redes, afirmações como: “a escola é a minha segunda casa”, “a escola é minha segunda família”, “aqui na rede somos uma grande família”, “nossa família escolar é forte” etc.
Quem não ouviu ou ainda ouve essas afirmações? Pois bem. Família que valoriza a singularidade dos filhos, dos membros que a constituem, ainda que os queira iguais no direito da pertença, não os quer iguais no direito do ser em si e para si o que quiserem ser. Ela os quer diversos, os quer únicos, os quer trilhando seus próprios caminhos. E, ainda que estejam unidos (nem sempre), num mesmo contexto, lugar, tempo e espaços, essa unidade não reclama o standard, o padrão, a homogeneidade – próprias das matrizes sociopolíticas pseudolibertárias que entendem – colocando tudo no mesmo quadrado, tudo no mesmo saco, tudo na mesma caixa, é melhor e mostra o quanto se é unido. Ledo engano, pseudo unidade.
Estar tudo e todos no mesmo lugar não significa unidade, significa controle. A unidade é própria do que reflete a ideia de conjunto – o conjunto no contexto das estruturas dissipativas como sustentou Prigogine (2004), ou como defende Morin (1994), quando nos permitem compreender que o todo não é maior que as partes, nem as partes maior que o todo. Todo e partes são unidades complexas que se retroalimentam. Para que isso ocorra, tal como ocorre numa família, numa escola, numa rede, não precisa que tudo esteja no mesmo lugar. Uma estrutura dissipativa é aberta, potente, construtiva – ordem, desordem, caos, organização, reorganização operam no mesmo sistema. Por isso, as teias, as redes de pescadores, os sistemas espirais, os fractais nos indicam que um sistema em rede, uma escola, a educação nas redes, são potenciais quando, na abertura, no impulsionamento do diverso e do multidimensional não criam caixas, ao contrário, criam pontes, criam alicerces, criam outros modos de abraçar (força potencial) o que acontece de diferente.
Volto a ideia de família – como é bom quando um filho(a) vai mundo a fora e se mostra, se faz, se permite, se constrói, se forma e se transforma pela experiência que faz de si. Acredito que, numa rede de ensino, numa escola, num sistema de educação, colocar tudo no mesmo quadrado pode passar uma mensagem que nem sempre é a melhor, a de controle. Esse controle, pelo pseudopoder, cria pseudorealidades (Kosik, 2007) e constrói uma maquiagem para dizer que tudo está em rede, tudo funciona em rede, tudo é unidade e conjunto, próprio dos movimentos da “vontade de potência” (Nietzsche, 2011) – força motriz humana que traduz a vontade de poder, realização, ambição e esforço ou desejo de alcançar a mais alta posição. A unidade não é isso. Ela está na diversidade e a diversidade, na unidade – o que é singular.
Sábio é o sistema, a escola, a educação, a família que, sabendo da diversidade com que lida, com que atua, com que constrói uma comunidade, permite que se façam - seus filhos, seus profissionais, seus projetos cada vez mais, únicos; fios singulares do tecido do qual se constituem e ajudam a constituir – somos a sociedade que construímos, vão nos dizer Morin e Le Moigne (2000). Portanto, somos o reflexo do espelho que é a sociedade e a educação que nela alicerçamos – diversa, múltipla, singular, porque permite que seus filhos – projetos, propostas, práticas, modos de operacionalizar e agir se mostrem mais autênticos. A autenticidade e, nesse contexto, a autoridade está na força do conhecimento que transforma porque reconhece que é unitário; é conjunto porque é diverso e se mostra diferente em tempos e espaços diferentes. Não precisa de uma mesma sala, de um mesmo lugar, de um mesmo ambiente para ser conjunto – os espaços são híbridos, como sustenta Santos (2014); não precisa de um mesmo lócus de operacionalização de ações (pensemos hoje, em metaversos), proposições e intenções para ser único, para mostrar unidade, precisa, pois, reconhecer no sistema, na estrutura, até onde cada filho-projeto pode chegar por ser quem é.
Para aquietar um pouco essa coceira nas ideias, acredito, tem autoridade na unidade, quem conhece em profundidade e coloca alma na tessitura das redes, dos sistemas, das escolas, da Educação. E sobre alma na Educação, essa será outra coceira, para outro momento.
Prof. Valdir Nogueira
Referências:
ALVES, Rubem. Curiosidade é uma coceira nas ideias. (2002) – disponível em: https://www1.folha.uol.com.br.
KOSIK, Karel. Dialética do concreto. São Paulo: Paz e Terra, 2007.
MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean-Louis. A inteligência da complexidade. Rio de Janeiro: Peirópolis, 2000.
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994.
NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de potência. Rio de Janeiro: Vozes, 2011.
PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. São Paulo: Unesp, 2004.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2014.

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